Por que Design de ServiçO se antes era Design de ServiçoS — o que mudou?
Decidi escrever o texto abaixo para iniciar um debate, ajustar uma rota, e registrar uma memória importante sobre o Design de Serviço no Brasil, dando créditos a quem merece. Escrevemos muito sobre conceitos e teorias, mas pouco se fala sobre os bastidores de nossa prática. Comentem, critiquem, divulguem!
Um pouco de contexto e história do Design de Serviço no Brasil
Em 2008, ao final de um período de um ano em Barcelona cursando um Master em Gestão de Design, voltei ao Brasil decidido a criar a primeira consultoria de Service Design do nosso país. Alguns meses antes, havia ido ao primeiro congresso da história sobre o assunto, organizado pela SDN (Service Design Network), e pude conhecer, em primeira mão, um ecossistema efervescente e altamente motivado a impactar positivamente o mundo por meio de melhores serviços. Como Engenheiro de Produção e Designer de Produtos, foi fácil ligar os pontos e entender que minha formação me colocava em um ótimo lugar para trabalhar com isso, além de parecer muito interessante. No evento, tive a chance de conhecer outros brasileiros, já muito mais familiarizados do que eu com a disciplina:
- Carla Cipolla, da COPPE-UFRJ e para mim a grande pioneira do Design de Serviço em nosso país, pupila do grande Ezio Manzini, já havia até sido coautora de um dos primeiros livros de Design de Serviço do mundo organizado pela Satu Miettinen
- Fernando Secomandi, que estava fazendo o seu mestrado em Service Design em TUDelft na época (e o qual, infelizmente, nunca mais vi)
- Érica Moreti, que estava estudando Design de Serviço no POLI.design em Milão, tendo aulas com a própria Carla e com o Ezio, mencionados acima
Ao chegar de volta ao Brasil descobri que havia mais uma pessoa, que havia passado pelo próprio POLI, chamada Igor Saraiva, também falando sobre Design de Serviço (por mais que o seu foco parecesse ser mais “Design Estratégico” do que serviço à época).
Poucos meses depois, quando abri a minha consultoria, tive que começar a falar sobre Service Design em português, assim como sobre vários outros conceitos e ferramentas que não existiam em nosso idioma naquela época (ou talvez porque eu, por incompetência, pressa ou falta de dedicação, não os havia encontrado em nosso idioma). Inclusive, pesquisando para escrever esse texto, descobri que a própria Carla já tinha artigos publicados em português sobre o assunto, algo que eu não sabia naquele período (achei que só tinha publicado artigos em inglês ou italiano).
Foi naquele momento de pioneirismo em um assunto até então muito pouco explorado no Brasil (e em nosso idioma) que adotei o termo “Design de Serviços”, com um “S” no final, para descrever o que eu estava fazendo. É claro, não dá para dizer que foi por eu tê-lo traduzido dessa forma que ele permaneceu sendo utilizado assim. Porém, a partir desse instante, ele começou a ser adotado dessa maneira pela maioria das pessoas que, pouco a pouco, começava a mergulhar nessa área.
Ainda nesse comecinho, um grande amigo e prestigiado acadêmico chamado Mauricio Manhaes, atualmente professor na SCAD (Savannah College of Art and Design), insistia que o mais correto seria Design de Serviço, sem o “S”. Ele falava e nós, na Livework, não ouvíamos. Em 2015, no entanto, iniciamos um processo de transformação profundo na Livework e entendemos que essa mudança poderia também transparecer por meio de uma correção desse “erro” histórico.
Mas por quê Design de Serviço sem o “s”?
Segundo o próprio Mauricio, serviços (no plural) são as unidades de saída e o que designers projetam é um serviço (no singular). Esse discurso está alinhado com a Lógica Serviço-Dominante (SD-Logic) e, para quem quiser entender um pouco melhor o que propõe e como funciona, sugiro começar pelo artigo que escrevi junto com o próprio Maurício aqui. No caso de hospitais, por exemplo, as unidades de saída poderiam indicar a quantidade de pacientes atendidos ou de serviços prestados a eles. No entanto, ao fazer um projeto para repensar o serviço do hospital, trata-se de um projeto de Design de Serviço. Um jeito fácil de entender é fazer um paralelo com inovação. Não se faz um projeto de inovações, por mais que algumas inovações possam resultar dele. O projeto é com teor inovador, de inovação. Pedi ajuda ao Maurício para complementar meu texto e ele produziu a obra prima que decidi publicar, na íntegra, abaixo. Ele explica em mais profundidade as razões de estarmos utilizando Design de Serviço, no singular.
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Segundo Maurício…
Palavras são importantes. Livros sagrados, constituições de países, literatura, conversas com amigos, missões e visões de empresas, a palavra empenhada, são todos baseados em textos.
Tem um velho ditado italiano: “Traduttore, traditore.” Ou seja, traduzir significa trair. Trair o autor e língua originais. Então, se por um lado o uso de palavras é decisivo, por outro, traduzir termos entre diferentes línguas sempre vai ser um tipo de traição em relação aos conceitos originais. Ou seja, nunca é uma tarefa sem riscos. No caso do Service Design, existem alguns conceitos fundamentais que precisam ser cuidadosamente traduzidos, sob pena de acostumar seus utilizadores com noções erradas dos conceitos envolvidos nessa disciplina.Para ficar somente nos fundamentais, é necessário colocar em bom Português os seguintes termos: Service Design, Service-Dominant Logic e Product.
Service Design
Em Inglês é possível que a justaposição de palavras sem preposição faça sentido. Em Português, ficaria “estranho” traduzir Service Design para Design Serviço, ou Serviço-Design. O que a justaposição sem preposição permite é o entendimento de uma relação simbiótica entre os termos. Nesse sentido, não se trataria do Design de algo, mas de um tipo de Design ou, mais precisamente, de um aspecto do Design. O economista Americano Herbert Simon (1916–2001), no clássico livro “The Science of the Artificial” (1969/1996), descreve Design como um das características centrais do que é ser humano, como a atividade sistêmica de favorecer a emergência de ordem a partir de uma miríade de decisões humanas (pp. 33 e 138).
Service, por sua vez, também possui uma forte conotação sistêmica. O antropólogo Francês Marcel Mauss (1872–1950), no livro “Essai sur le don” (1923/1950), descreve a sociedade humana como um “système des prestations totales” (p. 9). Ou seja, ele caracteriza a sociedade humana como um sistema fundamentalmente constituído pela provisão de serviço. Segundo ele, a troca de bens não passa de um detalhe na interminável e complexa rede de relacionamentos denominada Serviço. E, ainda, é necessário fazer uma distinção entre Serviço (singular) e Serviços (plural). O que fundamenta o Service Design, mais do que a provisão unitária de cada um dos serviços possíveis, é o entendimento de que a malha da qual emerge a sociedade é denominada Serviço, no singular. É algo como se referir ao fato de que o Oxigênio (singular) é o elemento que nos mantém vivos, apesar de respiramos diversos átomos de OxigênioS (plural).
Assim sendo, a ”correta” tradução de Service Design para o Português poderia ser Serviço-Design, ou Design Serviço, se referindo a atividade sistêmica de favorecer a emergência de serviços (plural) a partir de uma interminável e complexa rede de relacionamentos denominada serviço (singular). Em Portugûes, nos parece confortável a denominação Design Gráfico ou Design Industrial. Mas, Design Serviço soa estranho. E, também, nos referimos a Design de Produtos e não a Design Produto. Para entender a razão dessas diferentes denominações, é preciso conhecer a diferença entre Service-Dominant Logic e Goods-Dominant Logic.
De qualquer forma, a tradução que está estabelecida no momento é Design de Serviço (singular). A partícula "de" ainda revela uma perspectiva Goods-Dominant. Mas, pelo menos, o termo fica atrelado ao Serviço (singular), focando a prática no entendimento da interminável e complexa rede de relacionamentos que forma a sociedade humana.
Service-Dominant Logic
O fato de nos ser confortável referir a Design Gráfico ou Design Industrial e não a Design Serviço (sem de) ou Design Produto (sem de), tem muito a ver com a Goods-Dominant Logic.
Em 2004, os Professores Steve Vargo e Robert Lusch publicaram um artigo descrevendo uma lógica de mercado baseada predominantemente no serviço. Segundo eles, ao contrário do que a humanidade fez durante seus primeiros 200 mil anos, nos últimos 150 anos ela desenvolveu uma miopia denominada por eles de Goods-Dominant Logic ou, em Português: Lógica Bens-Dominante. Trata-se de uma lógica na qual os bens são o centro das trocas econômicas e os serviços são acessórios.
Como apresentado por Mauss, Vargo e Lusch, na realidade as relações econômicas na sociedade são baseadas no serviço (singular). Dessa forma, faz mais sentido, é mais lógico, descrever essas relações como Serviço-Dominante. Ou seja, uma lógica na qual o serviço é dominante e não os bens. O que não quer dizer que ela exclua os bens, muito pelo contrário. Ela propõe que só é possível entender o papel dos bens nas relações econômicas a partir dos serviços (plural) que os criam (Engenharia, Design, Logística, Vendas, Publicidade, etc) e os que eles possibilitam (Transporte, Limpeza, Descanso, Furo, Colheita, Comunicação, Diagnóstico, Prazer, etc).
Então, o sentido não é de uma nova lógica dominante, que impera única sobre os demais elementos da sociedade. Mas de uma lógica na qual domina a perspectiva do serviço ao invés do bem. Para a Lógica Serviço-Dominante, produtos são combinações de bens e serviços. Ou seja, dizer produtos, quer dizer bens e serviços. Trata-se de uma lógica inclusiva. Ela se refere a produtos como um todo indissociável de bens e serviços ao invés de considerar bens (G-D logic) como algo que independe do serviço, que independe da malha de relações que constitui a sociedade.
Finalmente, para entender o fato de nos ser confortável referir a Design Gráfico ou Design Industrial e não a Design Serviço (sem de) ou Design Produto (sem de), é explicado pela miopia criada pela Lógica Bens-Dominante no último século e meio. Devido a ela, nos parece óbvio que a unidade resultante desses processos é um bem fisicamente delimitado, na forma de uma revista, de uma logomarca, de um carro, de uma cadeira. Ao passo que, ao nos referirmos a um serviço, o nosso entendimento gerado pela revolução industrial exige que adicionemos um de para delimitar e sugerir um resultado que possa ser evidenciado por algum elemento físico.
Products = Goods + Service
Para a Lógica Serviço-Dominante não existe um “bem” ou “serviço” em estado puro. Não se trata de dois extremos de um contínuo entre um produto totalmente “bem” e outro totalmente “serviço.” A diferença entre as Lógicas Bem-Dominante e a Serviço-Dominante está na forma em que cada uma delas descreve exatamente o mesmo produto
Afinal, não existe no mercado nenhum “produto” sem serviço: tente comprar um “produto” sem o serviço de logística, vendas, e do próprio uso da coisa… não existe… A parte “bem” ou tangível de um produto pode assumir diversas formas. No caso de um produto que seria extremamente serviço-dominante, como uma consulta médica, o serviço necessita dos mais variados objetos para que possa existir (mesa, cadeira, estetoscópio, telefone, papel, etc). Da mesma forma, um produto extremamente bens-dominante, como um martelo, necessita dos mais variados serviços para que possa existir (logística, vendas, além dos diferentes serviços que esse objeto presta). Em Português, quando nos referimos a um bem que está quebrado ou que não funciona mais, dizermos que o bem “não presta mais.” Ou seja, não presta mais o serviço esperado. Afinal, como a definição baseada em Christian Grönroos (2008, p. 303) sugere: serviço é o resultado da coordenação de inúmeros elementos tangíveis e intangíveis que faz uma pessoa se sentir melhor depois do que antes.
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Mas eu já uso ServiçoS, tenho que mudar mesmo?
Não, você nem ninguém precisa fazer isso. Mas eu, particularmente, depois de ter ajudado a divulgar e construir o mercado no Brasil usando o termo “Design de Serviços”, decidi em 2015 que estava na hora de dar o braço a torcer e arrumar essa confusão que ajudei a criar. O que já foi, já foi, mas decidi que a partir daquele momento eu passaria a usar Design de Serviço, assim como a minha consultoria, a Livework. E apesar de ver muitas pessoas ainda usando o termo no plural, é incrível perceber que, pouco a pouco, cada vez mais pessoas estão usando Serviço em vez de Serviços também. Apesar de não habitar o mundo acadêmico e ficar teorizando sobre como os termos devem ser aplicados (minha abordagem é mais prática, quem me conhece, sabe) achei que, de alguma forma, caberia a mim voltar atrás e tentar ajustar uma rota que ajudei a desviar no passado. Por isso, agradeço a todos os amigos, pioneiros e grandes representantes do Design, que estão embarcando comigo nessa missão de mudar a nomenclatura no mercado. E se você, por outro lado, já usava Design de Serviço, pode contar comigo como um aliado para tentar impulsionar ainda mais essa mudança. É um detalhe, mas até mesmo um bom serviço (e o bom design) está nos detalhes, não é mesmo?